quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

São Paulo e poesia


Passei pouco mais de dez dias em São Paulo este mês. Desta vez pude conhecer um pouco mais da cidade depois de um final de semana fantástico na praia de Ubatuba. Pra quem for pra capital financeira do país recomendo começar a conhecê-la pelo centro: Praça da Sé, Pátio do Colégio, Centro Cultural Banco do Brasil e depois passar na Liberdade pra conhecer as lojas que nos transportam para o Japão, comer espetinho de camarão "bem balato" e guioza.


Outra parte importante a se conhecer é a área próxima à Estação da Luz, que tem ao seu lado: Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa, Memorial da Resistência e prédios que mais parecem depósito de gente



O Museu da Língua Portuguesa é imperdível, com sessão de um vídeo, narrado pela Fernanda Montenegro, que conta a gênese das línguas, depois a tela se levanta e dá acesso a uma sala escura com projeções de luz e narrações de poesias. A primeira a ser ouvida, e não caberia outra melhor ali, é um único verso de Procura da Poesia, do Drummond: Penetra surdamente no reino das palavras



O Museu da Resistência é um projeto que deveria ser reproduzido em outras cidades que sofreram forte repressão pelas nossas ditaduras, o Estado Novo de Vargas e a reinvenção do Plano Cohen do Gegê: o Regime de 64.




Bom também dar uma caminhada pela Paulista, a Wall Street tupiniquim, pra perceber o "espírito" de São Paulo, os prédios, as antenas, as lojas e pensar nos pobres de São Paulo. E pra contrabalancear a Paulista, ir até o Parque Ibirapuera e alugar um bibicleta pra dar umas pedaladas, além de visitar o Museu de Arte Contemporânea (que não me impressionou nem um pouco), o Museu de Arte Moderna e o Museu Afro Brasil (que tem muito material bom, mas é tanta coisa que fica uma certa poluição visual)



Mas na verdade a ideia pra esse post não era falar da viagem, e sim colocar um poema do Fernando Pessoa/Alberto Caeiro que o Mario - que foi um baita hospedeiro pra mim e pro Ismael, meu parceiro de viagem e de vida há uns 20 anos - me mostrou lá em São Paulo. Depois que ele leu fiquei um tempo pensando se já tinha lido algo tão bom do Pessoa. Tudo bem que minha preferência é pelo tensionamento do Álvaro de Campos, mas Caeiro é o Mestre e esse poema é um dos melhores que já li do Pessoa. Que aliás estava com uma ótima exposição no Museu da Língua Portuguesa


Manuscrito com dois poemas de Caeiro, uma ode de Ricardo Reis e um poema de Pessoa escritos no mesmo dia:



Agora me dei conta de que o Rodrigo já havia feito um post com esse poema declamado pela Maria Bethânia. Boto o vídeo aqui também.



Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
De segunda pessoa da trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era uma mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
..................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Po que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

4 comentários:

  1. Belo, belo, belo.. de não caber em palavras!
    Poesia forte, convicta, crua de rebuscamentos e transbordante de significados.

    Agradeço por me apresentá-la. :]

    PS: As dicas sobre roteiro em SP também estão ótimas, anotarei!

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  2. Que bom te ter mais uma vez aqui Helena :)
    Fiquei sabendo que tu estás em Rio Grande, parabéns!

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  3. Pois é, havia tempos que eu não vinha bisbilhotar!
    Ai, obrigada. Estou bastante feliz por aqui, acabei encontrando exatamente o que procurava. :D

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  4. Olá bruno, ñ tem nada q agradecer, coloquei bons blogs q costumo ver, o seu esta entre ele.
    Sobre o post do Pessoa, já corrigi e coloquei a fonte do teu blog.

    Agradeço aos elogios, tento me manter atualizado, aprender e ajudar a todos q visitam meu blog. Realmente tenho um plano parar de apenas postar informações de outros sites e passar a escrever, porem o tempo ñ tem deixado, mas quando possível começarei a fazer textos.

    Obg pelas dicas!

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