quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Anotações do Seminário Internacional As Eleitas, Os Eleitos: Como parlamentares tornam-se parlamentares





Aconteceu essa semana, de 5 a 7 de setembro, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre o Seminário Internacional As Eleitas, Os Eleitos: Como parlamentares tornam-se parlamentares. Colocarei aqui anotações que fiz das palestras em que estive presente.


Por que mulheres (não) são eleitas?

Clara Araújo – Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ

Manuela D’Ávila – Deputada Federal -PCdoB-RS

Coordenação: Sofia Cavedon - Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre-PT


-Estados mais conservadores são os que elegem mais mulheres. Parece estranho à primeira vista, mas se explica pela "eleição casada", por exemplo, o marido se elege senador e a esposa deputada

-Há uma definição histórica dos "lugares" a serem ocupados pelas mulheres, ações afirmativas de gênero e políticas e investimentos voltados a esse tema dão resultados. A professora citou como exemplo países do Norte Europeu que aumentaram a porcentagem de mulheres no Parlamento assim, e sem cotas partidárias. A discussão sobre as cotas para mulheres aparecem em praticamente todos os debates, Clara Araújo afirmou que cotas não funcionam em lista aberta.

-Senado é onde as mulheres têm mais chance de se elegerem. Isso se explica porque senadores são eleitos pelo sistema majoritário e não pelo proporcional.

-Pesquisas descartam "preconceito" em votar em mulher

- A variável mais importante para a reeleição de um político é já estar na política, o que leva "inércia eleitoral", problema que acho que deve ser combatido por uma maior democratização interna dos partidos (PT e PMDB são com mais democracia interna). Recentemente, uma das propostas do 4º Congresso Nacional do PT foi a de limitação de reeleição, proposta interessante.


Partidos e carreiras políticas na América Latina

Miguel Serna – Universidad deLa Republica– Uruguai

Robert Funk – Universidad de Chile

Socorro Braga – Universidade Federal de São Carlos- UFSCar

Coordenação: Adeli Sell – Vereador -PT-Porto Alegre




Miguel Serna falou sobre o Uruguai:

-Há um padrão de alta e prematura participação cidadã no Uruguai

- A profissionalização da política é maior nos partidos Colorado e Nacional e menor na Frente Ampla

-Quase 20% dos uruguaios participam de cooperativas

-Ascensão das esquerdas muda a circulação das elites políticas, entretanto isso não é tão forte na cúpula de poder político (devido à profissionalização)

-Frente Ampla tem governo com menos mulheres do que governos anteriores







Robert Funk problematizou a partir de estudos sobre o Chile da dinâmica de representação latino-americana:

-Sebastián Piñera montou um gabinete técnico, sob o discurso da eficiência, do "fazer mais com menos" e de uma "nova forma de governar". Percebe-se o mesmo discurso atualmente no PSDB. Apesar disso, Funk diz que Piñera tem conseguido o contrário do que prega.

-Questiona o motivo das manifestações no Chile terem surgido agora, acredita que é devido a uma crise de representatividade.

-Em geral, no Chile, as mulheres votam mais na direita



Socorro Braga apresentou pesquisa que compara a seleção de candidatos nos partidos. Há geralmente uma seleção informal e desburocratizada

Em ordem de maior inclusividade e descentralização:

PT - seleção por votação de delegados/representantes

PMDB - seleção pelos filados, mas sem votação

PSDB - não apresentou padrão

DEM - seleção por lideranças regionais



PT apresenta maior tempo de filiação para ser selecionado, lealdade mais relacionada ao partido

DEM apresenta lealdades mais consistentes em relação a lideranças do que ao partido em si


De onde vêm os representantes do Brasil?

Adriano Codato – Universidade Federal do Paraná – UFPR

Eliana Reis – Universidade Federal do Maranhão- UFMA

Ernesto Seidl – Universidade Federal de Sergipe- UFS

Igor Grill – Universidade Federal do Maranhão – UFMA

Coordenação: Sebastião Melo – Vereador PMDB – Porto Alegre


Adriano Codato comparou pesquisas sobre a mudança parlamentar a partir da eleição de 2002:

-Quanto mais heterogêneos os dirigentes, mais democracia

-2002: há uma queda no percentual de "políticos profissionais", ressalta que foi uma mudança conjuntural e não estrutural

-2006: eleição maior de empresário desde 1986

Igor Grill falou sobre sua tese de doutorado em que tratou de "famílias" de políticos gaúchos, as quais podem ser diferenciadas nos grupos:

a) Miliciano-Fazendeiro-Comerciante

Ingressam na política a partir do Estado Novo. Maioria passa pela UFRGS. Apresentam "vocação pública"

b) Empreendedor-Descendentes de imigrantes

Maioria passa pela PUC. Apresentam "vocação para empreendedorismo e trabalho comunitário"

c) Sindical-Estudantil

Ingressam na política a partir de 1970. Apresentam "vocação missionária"

Os políticos se mostram exemplares dessa representação/família acrescidos de alguma "extraordinariedade"

Igor Grill também apresentou comparações entre Maranhão e Rio Grande do Sul:

RS:
política mais diversificada e competitiva
mais advogado e professores na política
mais profissionais das ciências humanas na política

39% teve como primeiro cargo vereador e 28% como deputado


MA:
política mais diversificada e competitiva
mais médicos, engenheiros e empresários na política
12% teve como primeiro cargo vereador e 49% como deputado


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

London Calling

London calling to the faraway towns
Now that the war is declared and battle come down

Há tempo eu não fazia isso, mas vamos tentar resumir o que se tem sobre os tumultos londrinos:




Tudo indica que os protestos tiveram seu estopim na execução do jovem Mark Duggan por policiais londrinos.

Comecemos com depoimentos de quem está lá:

Nicole Mezzasalma, jornalista, via Todos os Fogos o Fogo:

Os eventos das últimas noites podem ser racionalizados política e socialmente: o desemprego em Londres é alto, o mais alto dos últimos 30 anos; as comunidades onde a confusão começou são pobres e marginalizadas, além de sofrer constante repressão policial por causa de brigas de gangues e armas de fogo; os jovens sentem que não têm perspectivas, e quem não acha que tem um futuro não tem nada a perder; e com estruturas familiares pulverizadas, não há disciplina em casa ou nas ruas.

Ainda que eu compreenda as razões sociais e políticas por trás da frustração destes jovens, nada justifica a violência sem freios que mutilou Londres e outras cidades da Inglaterra (a confusão se espalhou para Bristol, Liverpool, Birmingham, Leeds e Nottingham ontem). Policiais reportaram ver mães com crianças entrando em lojas e usando seus filhos para carregar os produtos roubados, e muitos dos jovens envolvidos nem sabem qual partido político está no poder no país – eles viram uma oportunidade de ter um Xbox, o último modelo de tênis ou uma TV de 42 polegadas e aproveitaram a sua chance. Os seis mil policiais que patrulhavam as ruas da cidade ontem à noite não tinham equipamento ou preparo para lidar com a bagunça, e na maioria dos casos havia entre cinco e dez arruaceiros pra cada policial.



Ken Smith, morador de Brixton, via Somos andando:

Esta geração que nasceu lá por 1995 é de jovens excluídos socialmente. Eles vivem uma subcultura. Eu tenho 41 anos, e quando eu era criança eu sabia que, se estudasse e trabalhasse, eu ganharia dinheiro e teria uma vida boa. Hoje eles acham que podem ter dinheiro sem fazer nada.”

Para Smith, falta educação, disciplina e valores, o que faz com que as crianças não entendam quando estão indo muito longe e ultrapassam os limites. Mas enfatiza que a questão não é racial, embora Mark Duggan fosse negro e há suspeita de que tenha sido assassinato por preconceito.

Ele diz que o problema vem de uma ou duas décadas atrás e reside na diferença de classes, muito marcada na Inglaterra, e incentivada pela mídia. “A TV, a música, tudo influencia para fazer de você quem você é. A TV diz o que você tem que vestir. As crianças querem roupas legais, tênis, celulares. E quando elas não têm as coisas elas ficam frustradas.


Policial londrino anônimo, via Diário do Centro do Mundo:

Estou na faixa dos 30 e sou policial há 15 anos, mais recentemente à paisana, fazendo vigilância. Servi como soldado no Iraque. Pensei que tinha visto tudo que teria que ver na minha carreira. Mas nada me preparou para o que experimentei na linha de frente nesta semana. Vi pela última vez saques no Iraque, na queda de Saddam Hussein – mas agora, inimaginável, isso estava acontecendo nas ruas de Londres e de outras cidades do Reino Unido.

Talvez a visão mais chocante foi a de crianças de 10 e 11 anos atacando policiais. Uma delas gritou, olhando para mim: “Matem os tiras!” Entendo a raiva que provocou o protesto pacífico da família Mark Duggan – o homem cuja morte em Tottenham foi o estopim dos tumultos. Mas fiquei chocado com a maneira como se propagaram os protestos.O que dizer, por exemplo, das pessoas carregando em vans bens saqueados como celulares e televisores de tela plana?.E a imagem mais inexplicável da semana? Ver pessoas que transportavam mercadorias roubadas de uma loja em que tudo custa uma libra. É difícil acreditar que esses saques foram motivados pela pobreza. A maioria das pessoas, afinal, pode pagar uma libra.

Meu maior medo nas ruas de Tottenham foi que um dos oficiais sob o meu comando fosse ferido. No domingo, experimentei o desgosto de coibir um pequeno comerciante que tentava salvar seu estoque de um prédio em chamas. Tirei meu capacete para ouvi-lo melhor. Ele soluçou quando me contou como havia construído o seu negócio. Disse que agora não sabia o que fazer. Eu simplesmente não sabia o que dizer a ele. Fiz algo que repetiria muito nas próximas horas: pedi desculpa.
Mil pessoas já foram presas em Londres. Não eram apenas pobres, desfavorecidos, jovens desiludidos. Pessoas com bons empregos se envolveram nos saques. Elas observaram os saqueadores e simplesmente aderiraram. É uma desgraça. Vi muitos folhetos distribuídos por advogados que estão orientando as pessoas sobre o que fazer caso sejam presas. ”Não cooperar com a polícia” é a mensagem. Um folheto oferecia conselhos sobre como se livrar de bens roubados e de como alterar a aparência caso a pessoa tenha sido pilhada por câmeras de segurança.

Ainda existem desordeiros e saqueadores livres por aí.O que eu diria a eles? É simples. Nós vamos cuidar que se faça justiça. Temam cada batida na porta. Empacotem suas escovas de dentes – nós estamos indo apanhar vocês.






David Cameron e a polícia ainda tentam entender o que está acontecendo. Cameron chegou à bobagem de tentar proibir o acesso às redes sociais nas áreas de maior conflito, algo quase inimaginável para um país de tradição liberal como a Inglaterra


Me impressiona a Globo chamar comentaristas que não seguem a linha deles, beira o amadorismo, como na discussão sobre drogas em que a professora da UERJ Gilberta Acselrad desconstrói a argumentação da Globo (http://www.youtube.com/watch?v=vVVgsqzEh-E).
Bom, mas voltando à Londres, aí está o Silvio Caccia Bava, editor do Le Monde Diplomatique Brasil, na Globonews:




O Jornal da Cultura - talvez um dos melhores hoje, assim como o Jornal das 10 da Globonews - apresenta um depoimento emocionado de um morador londrino:



Os motivos dos protestos são muitos, ancorados nas dificuldades econômicas, na indignação frente às ações policiais, na tensão advinda da tentativa do multiculturalismo. Mais uma prova de que não chegamos ao End of History. Acho que The Clash of Civilizations vai ser a grande questão política para este século, além da energética.

Virou bagunça?

Por quanto tempo irá durar?

Now get this
London calling yeah I was there too
An' you know what they sad? Well some of it was true

sábado, 2 de julho de 2011

Se os Tubarões Fossem Homens




Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, eles seriam mais gentís com os peixes pequenos. Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais. Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim de que não moressem antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.

Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões. Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. Aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência. Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista. E denunciaria imediatamente os tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que, entre os peixinhos e outros tubarões existem gigantescas diferenças. Eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, haveria belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nas quais se poderia brincar magnificamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.A música seria tão bela, tão bela, que os peixinhos sob seus acordes e a orquestra na frente, entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos. Também haveria uma religião ali.

Se os tubarões fossem homens, eles ensinariam essa religião. E só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões, pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar. E os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.




sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pequena análise da Revolução de Jasmim


O texto abaixo foi produzido para a disciplina de Psicologia Social I e pretende responder a partir da leitura de uma notícia às questões:

1)Como a relação entre indivíduo e sociedade aparece na reportagem?

2)A reportagem se enquadra em alguma das doutrinas expostas por Asch ( Tese Individualista ou Tese da Mentalidade Coletiva) ?

Obs.: tive que arrumar o sistema de citações pra colocar aqui, tentei deixar da forma mais simples possível. Essa formatação do blogspot é realmente irritante.

Notícia: O estopim das revoltas no Oriente Médio ocorridas a partir da Tunísia, onde Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo.

“O rapaz havia se formado na universidade, mas sem emprego teve que trabalhar como vendedor de rua. Quando autoridades corruptas confiscaram sua barraca, sua angústia foi tão grande que ele se suicidou em plena rua, colocando fogo ao próprio corpo. Muitos se identificaram com seu sofrimento e ele virou um símbolo para as injustiças do país, inclusive para a rede de corrupção que ia da família Ben Ali aos funcionários mais subalternos do Estado.”

Fonte: http://todososfogos.blogspot.com/2011/01/rebeliao-na-tunisia-e-democracia-no.html

“Twenty-six-year-old Mohamed Bouazizi, living in the provincial town of Sidi Bouzid, had a university degree but no work. To earn some money he took to selling fruit and vegetables in the street without a licence. When the authorities stopped him and confiscated his produce, he was so angry that he set himself on fire.


Rioting followed and security forces sealed off the town. On Wednesday, another jobless young man in Sidi Bouzid climbed an electricity pole, shouted "no for misery, no for unemployment", then touched the wires and electrocuted himself.


On Friday, rioters in Menzel Bouzaiene set fire to police cars, a railway locomotive, the local headquarters of the ruling party and a police station. After being attacked with Molotov cocktails, the police shot back, killing a teenage protester.


By Saturday, the protests had reached the capital, Tunis – and a second demonstration took place there yesterday”

Fonte: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/28/tunisia-ben-ali


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A ação tomada a cabo por Mohamed Bouazizi é um fato rico para estudo em Psicologia Social. Como este ato isolado (se é que um ato pode ser isolado) pôde desencadear a Revolução de Jasmim que retirou do poder o ditador Zine El Abidine Ben Ali e espraiou para a região uma onda de revoltas populares?

Não há aqui a pretensão de analisar especificidades das revoltas, entretanto um detalhe comum a estes movimentos é importante a ser elencado: a organização e divulgação através das novas redes sociais. Sobre esta situação deve-se atentar para a afirmativa de Guareschi[1] de que O Zeitgeist, hoje, é a comunicação. A comunicação permeia todo o raciocínio da análise que se pretende aqui.

Como a relação entre indivíduo e sociedade aparece na reportagem? Bouazizi havia passado por diversas humilhações, tentou conversar com o governador local, mas não foi atendido, não conseguiu estabelecer uma relação cidadã com a autoridade, foi impedido de se comunicar, de se relacionar de maneira democrática com sua pólis. A situação de um governo autoritário, cerceador de oportunidades e de diálogo com o povo - representado por Bouazizi - concretiza dominação, supressão de direitos, tensão sobre esse povo. Thompson[2] afirma que Interpretar a ideologia é explicar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar. A dominação é latente em um governo que desconsidera o demos, e assim a cidadania, torna o sujeito despossuído de participação. Tal regime se sustenta por meio de métodos de coerção, pois não possui forças que o legitimem, já que a autoridade só possui sentido quando é legitimada pelo povo.

Decorrente desta forte tensão social, Bouazizi recorreu ao ato mais desesperado para poder se comunicar, sacrificou seu corpo como símbolo, oferecendo-o para que o mundo enxergasse sua sociedade e sua condição. Deixou uma última mensagem no site de relacionamentos Facebook (e aqui voltamos para o papel das novas redes sociais):

“Estou viajando mãe. Perdoe-me. Reprovação e culpa não vão ser úteis. Estou perdido e está fora das minhas mãos. Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe. Agora vou e não vou voltar. Repare que eu não chorei e não caíram lágrimas de meus olhos. Não há mais espaço para reprovações ou culpa nessa época de traição na terra do povo. Não estou me sentindo normal e nem no meu estado certo. Estou viajando e peço a quem conduz a viagem esquecer”[3]

Cabe aqui a constatação de Marcuse[4]: Se são violentos é porque estão desesperados. Thompson[5] assinala que As ações simbólicas podem provocar reações, liderar respostas de determinado teor, sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer, apoiar os negócios do estado ou sublevar as massas em revolta coletiva. É isto que se vê claramente no ato do tunisiano, desencadeador de um efeito dominó, o já chamado “Efeito Tunísia” que está abalando os governos da região, como Egito, Líbia, Síria, Bahrein. Para a divulgação e, podemos dizer, propulsão deste efeito, o poder de organização através da internet tem se mostrado essencial, e aqui percebemos concretamente a afirmativa de Guareschi[1] de que a comunicação, hoje, constrói a realidade. A comunicação entre sociedades tensionadas por governos repressores é o que está corroendo estes mesmo governos. Verificamos uma dinâmica comunicativa (sintetizada na figura abaixo), de relações, intra e intersociedades, mesmo com as tentativas coercitivas de cerceamento da liberdade de expressão, cerceamento este que a internet vem tangenciando.



A partir da nova relação governo-sociedade o povo retoma a soberania, entendida aqui conforme o formulado por Reale[6]: o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência. Com este conceito verifica-se o desmoronamento do poder autoritário de exceção e a formação de umnovo contrato social, uma nova relação do sujeito com a pólis, com a comunidade que legitima as novas autoridades. Participação é comunicação, seja em regimes democráticos, comunistas, anárquicos, o que dá sentido, o que constrói a autoridade é o povo, como titular da soberania que se comunica, que sustenta o poder. Importante também dentro do conceito de Reale a necessidade de a soberania constituir-se de fins éticos, Guareschi[7] nos ensina que ética não pode ser considerada fora das relações, ninguém é ético sozinho: só podemos falar em ética no contexto de relações.

Solomon Asch[8], em seu Psicologia Social, nos apresenta a Tese Individualista e a Tese da Mentalidade Coletiva, doutrinas que à época dividiam as ciências sociais. Para a Tese Individualista o indivíduo é a única realidade, os processos psicológicos se desenvolvem somente no indivíduo, é a única unidade acessível à observação, somente ele decide e age. Verifica-se uma conexão entre tal concepção e a Cosmovisão do Liberalismo Individualista, para este entendimento o indivíduo é separado do grupo, é o divisum a quolibet alio (separado de tudo mais), é um sujeito solipsista, egocentrado. A Tese da Mentalidade Coletiva entende que o sujeito se perde no grupo, os seres são apenas instrumentos pelos quais as forças culturais agem. Relacionada a esta teoria está a Concepção do Totalitarismo Coletivista[9] que toma o homem como peça do sistema, massificado pelo coletivo.

Entende-se aqui que nenhuma das doutrinas extremas apresentadas por Asch satisfazem a análise de um fato como o apresentado a partir da ação desesperada de Mohamed Bouazizi. Asch assinala que

Os fatos coletivos precisam ter seu fundamento nos indivíduos; a consciência do grupo, as intenções e os valores do grupo existem nos indivíduos e somente neles. Mas deixam de ser simplesmente fatos individuais em virtude de sua referência a outros. Conclui-se que um processo de grupo não é a soma de atividades individuais nem um fato acrescentado às atividades dos indivíduos

Posição semelhante ao já visto raciocínio de Guareschi quando este trata da ética. A relação, a comunicação é por demais complexa para ser bem compreendida se enquadrada em uma das teorias dicotômicas. Estudos sobre fatos tão complexos como o apresentado necessitam de uma relação de conhecimentos interdisciplinar, para tal devemos relembrar do ensinamento de Martín-Baró:[10]


Não se trata de abandonar a psicologia; trata-se de colocar o saber psicológico a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar dos menos não se faça sobre o mal estar dos mais, em que a realização de alguns não requeira a negação dos outros, em que o interesse de poucos não exija a desumanização de todos.



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[1] Mídia e Democracia: o quarto versus o quinto poder. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.1, n.1, p. 6-25, jul.-dez. 2007

[2] Citado por Marília Veronese e Pedrinho Guareschi em: VERONESE, M e GUARESCHI, P. Hermenêutica de Profundidade na pesquisa social. Ciências Sociais Unisinos, v.42, n.2, maio-ago., 2006

[3] Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mohamed_Bouazizi>. Acesso em: 26 março 2011

[4] Citado por Arminda Aberastury em: ABERASTURY, A. e KNOBEL, M. Adolescência normal: Um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes médicas, 1981.

[5] THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. SãoPaulo: Editora Vozes 1995.

[6] Citado por Dalmo de Abreu Dallari em: DALLARI, D de A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2010.

[7] GUARESCHI, P.Psicologia Social Crítica: como prática de libertação.Porto Alegre:EDIPUCRS, 2009

[8] ASCH, S. E. Psicologia Social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

[9] As concepções de Liberalismo Individualista e de Totalitarismo coletivista são apresentadas por Guareschi em: GUARESCHI,P.Psicologia Social Crítica: como prática de libertação.Porto Alegre:EDIPUCRS, 2009

[10] Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 7-27


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

São Paulo e poesia


Passei pouco mais de dez dias em São Paulo este mês. Desta vez pude conhecer um pouco mais da cidade depois de um final de semana fantástico na praia de Ubatuba. Pra quem for pra capital financeira do país recomendo começar a conhecê-la pelo centro: Praça da Sé, Pátio do Colégio, Centro Cultural Banco do Brasil e depois passar na Liberdade pra conhecer as lojas que nos transportam para o Japão, comer espetinho de camarão "bem balato" e guioza.


Outra parte importante a se conhecer é a área próxima à Estação da Luz, que tem ao seu lado: Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa, Memorial da Resistência e prédios que mais parecem depósito de gente



O Museu da Língua Portuguesa é imperdível, com sessão de um vídeo, narrado pela Fernanda Montenegro, que conta a gênese das línguas, depois a tela se levanta e dá acesso a uma sala escura com projeções de luz e narrações de poesias. A primeira a ser ouvida, e não caberia outra melhor ali, é um único verso de Procura da Poesia, do Drummond: Penetra surdamente no reino das palavras



O Museu da Resistência é um projeto que deveria ser reproduzido em outras cidades que sofreram forte repressão pelas nossas ditaduras, o Estado Novo de Vargas e a reinvenção do Plano Cohen do Gegê: o Regime de 64.




Bom também dar uma caminhada pela Paulista, a Wall Street tupiniquim, pra perceber o "espírito" de São Paulo, os prédios, as antenas, as lojas e pensar nos pobres de São Paulo. E pra contrabalancear a Paulista, ir até o Parque Ibirapuera e alugar um bibicleta pra dar umas pedaladas, além de visitar o Museu de Arte Contemporânea (que não me impressionou nem um pouco), o Museu de Arte Moderna e o Museu Afro Brasil (que tem muito material bom, mas é tanta coisa que fica uma certa poluição visual)



Mas na verdade a ideia pra esse post não era falar da viagem, e sim colocar um poema do Fernando Pessoa/Alberto Caeiro que o Mario - que foi um baita hospedeiro pra mim e pro Ismael, meu parceiro de viagem e de vida há uns 20 anos - me mostrou lá em São Paulo. Depois que ele leu fiquei um tempo pensando se já tinha lido algo tão bom do Pessoa. Tudo bem que minha preferência é pelo tensionamento do Álvaro de Campos, mas Caeiro é o Mestre e esse poema é um dos melhores que já li do Pessoa. Que aliás estava com uma ótima exposição no Museu da Língua Portuguesa


Manuscrito com dois poemas de Caeiro, uma ode de Ricardo Reis e um poema de Pessoa escritos no mesmo dia:



Agora me dei conta de que o Rodrigo já havia feito um post com esse poema declamado pela Maria Bethânia. Boto o vídeo aqui também.



Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso de mais para fingir
De segunda pessoa da trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era uma mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Po que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?