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quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Anotações do Seminário Internacional As Eleitas, Os Eleitos: Como parlamentares tornam-se parlamentares





Aconteceu essa semana, de 5 a 7 de setembro, na Câmara de Vereadores de Porto Alegre o Seminário Internacional As Eleitas, Os Eleitos: Como parlamentares tornam-se parlamentares. Colocarei aqui anotações que fiz das palestras em que estive presente.


Por que mulheres (não) são eleitas?

Clara Araújo – Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ

Manuela D’Ávila – Deputada Federal -PCdoB-RS

Coordenação: Sofia Cavedon - Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre-PT


-Estados mais conservadores são os que elegem mais mulheres. Parece estranho à primeira vista, mas se explica pela "eleição casada", por exemplo, o marido se elege senador e a esposa deputada

-Há uma definição histórica dos "lugares" a serem ocupados pelas mulheres, ações afirmativas de gênero e políticas e investimentos voltados a esse tema dão resultados. A professora citou como exemplo países do Norte Europeu que aumentaram a porcentagem de mulheres no Parlamento assim, e sem cotas partidárias. A discussão sobre as cotas para mulheres aparecem em praticamente todos os debates, Clara Araújo afirmou que cotas não funcionam em lista aberta.

-Senado é onde as mulheres têm mais chance de se elegerem. Isso se explica porque senadores são eleitos pelo sistema majoritário e não pelo proporcional.

-Pesquisas descartam "preconceito" em votar em mulher

- A variável mais importante para a reeleição de um político é já estar na política, o que leva "inércia eleitoral", problema que acho que deve ser combatido por uma maior democratização interna dos partidos (PT e PMDB são com mais democracia interna). Recentemente, uma das propostas do 4º Congresso Nacional do PT foi a de limitação de reeleição, proposta interessante.


Partidos e carreiras políticas na América Latina

Miguel Serna – Universidad deLa Republica– Uruguai

Robert Funk – Universidad de Chile

Socorro Braga – Universidade Federal de São Carlos- UFSCar

Coordenação: Adeli Sell – Vereador -PT-Porto Alegre




Miguel Serna falou sobre o Uruguai:

-Há um padrão de alta e prematura participação cidadã no Uruguai

- A profissionalização da política é maior nos partidos Colorado e Nacional e menor na Frente Ampla

-Quase 20% dos uruguaios participam de cooperativas

-Ascensão das esquerdas muda a circulação das elites políticas, entretanto isso não é tão forte na cúpula de poder político (devido à profissionalização)

-Frente Ampla tem governo com menos mulheres do que governos anteriores







Robert Funk problematizou a partir de estudos sobre o Chile da dinâmica de representação latino-americana:

-Sebastián Piñera montou um gabinete técnico, sob o discurso da eficiência, do "fazer mais com menos" e de uma "nova forma de governar". Percebe-se o mesmo discurso atualmente no PSDB. Apesar disso, Funk diz que Piñera tem conseguido o contrário do que prega.

-Questiona o motivo das manifestações no Chile terem surgido agora, acredita que é devido a uma crise de representatividade.

-Em geral, no Chile, as mulheres votam mais na direita



Socorro Braga apresentou pesquisa que compara a seleção de candidatos nos partidos. Há geralmente uma seleção informal e desburocratizada

Em ordem de maior inclusividade e descentralização:

PT - seleção por votação de delegados/representantes

PMDB - seleção pelos filados, mas sem votação

PSDB - não apresentou padrão

DEM - seleção por lideranças regionais



PT apresenta maior tempo de filiação para ser selecionado, lealdade mais relacionada ao partido

DEM apresenta lealdades mais consistentes em relação a lideranças do que ao partido em si


De onde vêm os representantes do Brasil?

Adriano Codato – Universidade Federal do Paraná – UFPR

Eliana Reis – Universidade Federal do Maranhão- UFMA

Ernesto Seidl – Universidade Federal de Sergipe- UFS

Igor Grill – Universidade Federal do Maranhão – UFMA

Coordenação: Sebastião Melo – Vereador PMDB – Porto Alegre


Adriano Codato comparou pesquisas sobre a mudança parlamentar a partir da eleição de 2002:

-Quanto mais heterogêneos os dirigentes, mais democracia

-2002: há uma queda no percentual de "políticos profissionais", ressalta que foi uma mudança conjuntural e não estrutural

-2006: eleição maior de empresário desde 1986

Igor Grill falou sobre sua tese de doutorado em que tratou de "famílias" de políticos gaúchos, as quais podem ser diferenciadas nos grupos:

a) Miliciano-Fazendeiro-Comerciante

Ingressam na política a partir do Estado Novo. Maioria passa pela UFRGS. Apresentam "vocação pública"

b) Empreendedor-Descendentes de imigrantes

Maioria passa pela PUC. Apresentam "vocação para empreendedorismo e trabalho comunitário"

c) Sindical-Estudantil

Ingressam na política a partir de 1970. Apresentam "vocação missionária"

Os políticos se mostram exemplares dessa representação/família acrescidos de alguma "extraordinariedade"

Igor Grill também apresentou comparações entre Maranhão e Rio Grande do Sul:

RS:
política mais diversificada e competitiva
mais advogado e professores na política
mais profissionais das ciências humanas na política

39% teve como primeiro cargo vereador e 28% como deputado


MA:
política mais diversificada e competitiva
mais médicos, engenheiros e empresários na política
12% teve como primeiro cargo vereador e 49% como deputado


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Pequena análise da Revolução de Jasmim


O texto abaixo foi produzido para a disciplina de Psicologia Social I e pretende responder a partir da leitura de uma notícia às questões:

1)Como a relação entre indivíduo e sociedade aparece na reportagem?

2)A reportagem se enquadra em alguma das doutrinas expostas por Asch ( Tese Individualista ou Tese da Mentalidade Coletiva) ?

Obs.: tive que arrumar o sistema de citações pra colocar aqui, tentei deixar da forma mais simples possível. Essa formatação do blogspot é realmente irritante.

Notícia: O estopim das revoltas no Oriente Médio ocorridas a partir da Tunísia, onde Mohamed Bouazizi ateou fogo ao próprio corpo.

“O rapaz havia se formado na universidade, mas sem emprego teve que trabalhar como vendedor de rua. Quando autoridades corruptas confiscaram sua barraca, sua angústia foi tão grande que ele se suicidou em plena rua, colocando fogo ao próprio corpo. Muitos se identificaram com seu sofrimento e ele virou um símbolo para as injustiças do país, inclusive para a rede de corrupção que ia da família Ben Ali aos funcionários mais subalternos do Estado.”

Fonte: http://todososfogos.blogspot.com/2011/01/rebeliao-na-tunisia-e-democracia-no.html

“Twenty-six-year-old Mohamed Bouazizi, living in the provincial town of Sidi Bouzid, had a university degree but no work. To earn some money he took to selling fruit and vegetables in the street without a licence. When the authorities stopped him and confiscated his produce, he was so angry that he set himself on fire.


Rioting followed and security forces sealed off the town. On Wednesday, another jobless young man in Sidi Bouzid climbed an electricity pole, shouted "no for misery, no for unemployment", then touched the wires and electrocuted himself.


On Friday, rioters in Menzel Bouzaiene set fire to police cars, a railway locomotive, the local headquarters of the ruling party and a police station. After being attacked with Molotov cocktails, the police shot back, killing a teenage protester.


By Saturday, the protests had reached the capital, Tunis – and a second demonstration took place there yesterday”

Fonte: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/dec/28/tunisia-ben-ali


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A ação tomada a cabo por Mohamed Bouazizi é um fato rico para estudo em Psicologia Social. Como este ato isolado (se é que um ato pode ser isolado) pôde desencadear a Revolução de Jasmim que retirou do poder o ditador Zine El Abidine Ben Ali e espraiou para a região uma onda de revoltas populares?

Não há aqui a pretensão de analisar especificidades das revoltas, entretanto um detalhe comum a estes movimentos é importante a ser elencado: a organização e divulgação através das novas redes sociais. Sobre esta situação deve-se atentar para a afirmativa de Guareschi[1] de que O Zeitgeist, hoje, é a comunicação. A comunicação permeia todo o raciocínio da análise que se pretende aqui.

Como a relação entre indivíduo e sociedade aparece na reportagem? Bouazizi havia passado por diversas humilhações, tentou conversar com o governador local, mas não foi atendido, não conseguiu estabelecer uma relação cidadã com a autoridade, foi impedido de se comunicar, de se relacionar de maneira democrática com sua pólis. A situação de um governo autoritário, cerceador de oportunidades e de diálogo com o povo - representado por Bouazizi - concretiza dominação, supressão de direitos, tensão sobre esse povo. Thompson[2] afirma que Interpretar a ideologia é explicar a conexão entre o sentido mobilizado pelas formas simbólicas e as relações de dominação que este sentido ajuda a estabelecer e sustentar. A dominação é latente em um governo que desconsidera o demos, e assim a cidadania, torna o sujeito despossuído de participação. Tal regime se sustenta por meio de métodos de coerção, pois não possui forças que o legitimem, já que a autoridade só possui sentido quando é legitimada pelo povo.

Decorrente desta forte tensão social, Bouazizi recorreu ao ato mais desesperado para poder se comunicar, sacrificou seu corpo como símbolo, oferecendo-o para que o mundo enxergasse sua sociedade e sua condição. Deixou uma última mensagem no site de relacionamentos Facebook (e aqui voltamos para o papel das novas redes sociais):

“Estou viajando mãe. Perdoe-me. Reprovação e culpa não vão ser úteis. Estou perdido e está fora das minhas mãos. Perdoe-me se não fiz como você disse e desobedeci suas ordens. Culpe a era em que vivemos, não me culpe. Agora vou e não vou voltar. Repare que eu não chorei e não caíram lágrimas de meus olhos. Não há mais espaço para reprovações ou culpa nessa época de traição na terra do povo. Não estou me sentindo normal e nem no meu estado certo. Estou viajando e peço a quem conduz a viagem esquecer”[3]

Cabe aqui a constatação de Marcuse[4]: Se são violentos é porque estão desesperados. Thompson[5] assinala que As ações simbólicas podem provocar reações, liderar respostas de determinado teor, sugerir caminhos e decisões, induzir a crer e a descrer, apoiar os negócios do estado ou sublevar as massas em revolta coletiva. É isto que se vê claramente no ato do tunisiano, desencadeador de um efeito dominó, o já chamado “Efeito Tunísia” que está abalando os governos da região, como Egito, Líbia, Síria, Bahrein. Para a divulgação e, podemos dizer, propulsão deste efeito, o poder de organização através da internet tem se mostrado essencial, e aqui percebemos concretamente a afirmativa de Guareschi[1] de que a comunicação, hoje, constrói a realidade. A comunicação entre sociedades tensionadas por governos repressores é o que está corroendo estes mesmo governos. Verificamos uma dinâmica comunicativa (sintetizada na figura abaixo), de relações, intra e intersociedades, mesmo com as tentativas coercitivas de cerceamento da liberdade de expressão, cerceamento este que a internet vem tangenciando.



A partir da nova relação governo-sociedade o povo retoma a soberania, entendida aqui conforme o formulado por Reale[6]: o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência. Com este conceito verifica-se o desmoronamento do poder autoritário de exceção e a formação de umnovo contrato social, uma nova relação do sujeito com a pólis, com a comunidade que legitima as novas autoridades. Participação é comunicação, seja em regimes democráticos, comunistas, anárquicos, o que dá sentido, o que constrói a autoridade é o povo, como titular da soberania que se comunica, que sustenta o poder. Importante também dentro do conceito de Reale a necessidade de a soberania constituir-se de fins éticos, Guareschi[7] nos ensina que ética não pode ser considerada fora das relações, ninguém é ético sozinho: só podemos falar em ética no contexto de relações.

Solomon Asch[8], em seu Psicologia Social, nos apresenta a Tese Individualista e a Tese da Mentalidade Coletiva, doutrinas que à época dividiam as ciências sociais. Para a Tese Individualista o indivíduo é a única realidade, os processos psicológicos se desenvolvem somente no indivíduo, é a única unidade acessível à observação, somente ele decide e age. Verifica-se uma conexão entre tal concepção e a Cosmovisão do Liberalismo Individualista, para este entendimento o indivíduo é separado do grupo, é o divisum a quolibet alio (separado de tudo mais), é um sujeito solipsista, egocentrado. A Tese da Mentalidade Coletiva entende que o sujeito se perde no grupo, os seres são apenas instrumentos pelos quais as forças culturais agem. Relacionada a esta teoria está a Concepção do Totalitarismo Coletivista[9] que toma o homem como peça do sistema, massificado pelo coletivo.

Entende-se aqui que nenhuma das doutrinas extremas apresentadas por Asch satisfazem a análise de um fato como o apresentado a partir da ação desesperada de Mohamed Bouazizi. Asch assinala que

Os fatos coletivos precisam ter seu fundamento nos indivíduos; a consciência do grupo, as intenções e os valores do grupo existem nos indivíduos e somente neles. Mas deixam de ser simplesmente fatos individuais em virtude de sua referência a outros. Conclui-se que um processo de grupo não é a soma de atividades individuais nem um fato acrescentado às atividades dos indivíduos

Posição semelhante ao já visto raciocínio de Guareschi quando este trata da ética. A relação, a comunicação é por demais complexa para ser bem compreendida se enquadrada em uma das teorias dicotômicas. Estudos sobre fatos tão complexos como o apresentado necessitam de uma relação de conhecimentos interdisciplinar, para tal devemos relembrar do ensinamento de Martín-Baró:[10]


Não se trata de abandonar a psicologia; trata-se de colocar o saber psicológico a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar dos menos não se faça sobre o mal estar dos mais, em que a realização de alguns não requeira a negação dos outros, em que o interesse de poucos não exija a desumanização de todos.



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[1] Mídia e Democracia: o quarto versus o quinto poder. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.1, n.1, p. 6-25, jul.-dez. 2007

[2] Citado por Marília Veronese e Pedrinho Guareschi em: VERONESE, M e GUARESCHI, P. Hermenêutica de Profundidade na pesquisa social. Ciências Sociais Unisinos, v.42, n.2, maio-ago., 2006

[3] Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mohamed_Bouazizi>. Acesso em: 26 março 2011

[4] Citado por Arminda Aberastury em: ABERASTURY, A. e KNOBEL, M. Adolescência normal: Um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes médicas, 1981.

[5] THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. SãoPaulo: Editora Vozes 1995.

[6] Citado por Dalmo de Abreu Dallari em: DALLARI, D de A. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2010.

[7] GUARESCHI, P.Psicologia Social Crítica: como prática de libertação.Porto Alegre:EDIPUCRS, 2009

[8] ASCH, S. E. Psicologia Social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

[9] As concepções de Liberalismo Individualista e de Totalitarismo coletivista são apresentadas por Guareschi em: GUARESCHI,P.Psicologia Social Crítica: como prática de libertação.Porto Alegre:EDIPUCRS, 2009

[10] Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 7-27


sábado, 11 de dezembro de 2010

Fortalecimento de instituições republicanas e democráticas

Um dos grandes trunfos do governo Lula é ter aprimorado, fortalecido e criado mecanismos de democracia direta, como a Conferência Nacional de Segurança Pública, a Conferência Nacional de Comunicação e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Democracia direta é fundamental para manutenção de instituições republicanas e democráticas, abaixo post do Marco Weissheimer do RS Urgente.


Clemente Ganz Lúcio - A transformação que nós precisamos fazer no país exige a construção de um novo "contrato social", de um novo acordo social. Na medida em que a estratégia de desenvolvimento passa por dentro do Estado, abre a possibilidade de nós construirmos uma nova aliança social capaz de garantir a longo prazo essa estratégia de desenvolvimento.

Viviane Senna - Todos nós aqui representamos pontos-de-vista diferentes, somos de segmentos diferentes e defendemos, muitas vezes, interesses diferentes. E isso não tem nada de errado, isso faz parte da fisiologia, e não da patologia de qualquer sistema democrático, O errado não é defender interesses, o errado é fazer isso de costas para o todo



A rica experiência de 8 anos do CDES



O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), órgão de assessoramento da Presidência da República, está completando oito anos de atividade. Neste período, empresários, trabalhadores, professores universitários, movimentos sociais, lideranças comunitárias e representantes da sociedade em geral debateram uma agenda de desenvolvimento para o país. Quem participou das reuniões e seminários promovidos pelo CDES teve a oportunidade de conhecer uma experiência ousada e original de participação da sociedade no assessoramento do presidente da República.

O Rio Grande do Sul terá a oportunidade de conhecer esse tipo de prática a partir de 2011, com a instalação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social em nível estadual pelo governo Tarso Genro. O desafio de coordenar a instalação do CDES gaúcho está nas mãos de Marcelo Danéris.

Infelizmente, a imensa maioria dos debates do CDES foi ignorada pelos meios de comunicação, o que privou a população de ter acesso a informações e debates valiosos sobre problemas do Brasil e propostas para superá-los. O CDES produziu um vídeo de 12 minutos para fazer um balanço deste período e mostrar um pouco do que foi feito. Dá uma ideia do tipo de debate e espaço de participação que pode ser aberto aqui no Estado a partir de janeiro. A direção é de Maria Velloso, com roteiro de Katarina Peixoto, edição de André Oliveira e locução de Clarissa Pont.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Rio 3

Texto de Mauricio Santoro. Negritos são meus.

A Longa Marcha da República


As polícias e as Forças Armadas ocuparam o Complexo do Alemão em poucas horas, sem confronto violento, mas os traficantes não se entregaram, nem foram presos, o que faz crer que estão escondidos nas casas dos moradores (provavelmente mantendo muitos como reféns) ou abrigados nas matas das redondezas.

Caiu o mito do crime organizado todo-poderoso. O que vimos foi uma rede de compadres, arrogante, autoritária, cheia de bravatas, que desmoronou diante da reação rápida e decidida do poder público, com cenas humilhantes como a do traficante que urinou nas calças ao ser detido. Torço para tenhamos uma solução pacífica, com a captura dos bandidos.

A imagem mais marcante deste domingo foi o hasteamento da bandeira brasileira (e não a das unidades policiais de elite, como era habitual nas operações de invasão de favelas) no alto do complexo, simbolizando a (re)conquista do território pelo Estado. Mais uma foto para a iconografia bélica que tomou conta da cidade, numa semana que certa imprensa comparou ao desembarque Aliado na Normandia. Por esta lógica, este momento seria talvez como os soviéticos erguendo seu estandarte no Reichtag, durante a conquista de Berlim...

Mas o que vivemos no Rio - insisto no ponto - não é uma guerra. Nem sequer um conflito civil, de fundo religioso ou étnico. Os xiitas não tomaram o Alemão, os hutus não conquistaram Vila Cruzeiro. Trata-se de uma operação policial, com auxílio militar, para eliminar o controle de quadrilhas criminosas sobre bairros pobres. A linguagem bélica tem muitos usos e abusos, em especial legitimar atos autoritários do poder público contra a população mais vulnerável.

Todos os episódios marcantes da violência no Rio geraram um impulso de renovação e reforma, que murchou após poucas semanas de entusiasmo midiático. Isso ocorreu depois das chacinas dos anos 90 e de crimes chocantes como o sequestro do ônibus 174,o assassinato do jornalista Tim Lopes e o do menino João Hélio etc. Há consenso que são necesssárias transformações profundas no aparato legal-repressivo: um código prisional, um regime mais restritivo aos chefes criminosos, monitoramento de advogados e parentes de presos que agem como pombos-correios... Ainda não se fala na reforma da polícia - por exemplo, criação de uma força de ciclo único, que fundisse a PM e a Civil. Sou cético quanto à chance de algo assim avançar.

O Alemão havia sido palco de um grande conflito há quase quatro anos, no início do governo Cabral. Aquela operação fracassada acabou sendo o incentivo para outras iniciativas, que acabaram resultando nas UPPs. A tendência é expandir essa experiência para além das 13 comunidades nas quais foram implementadas e a ocupação do Alemão é o primeiro passo para a UPP nesse complexo de favelas.

O Alemão agora tem Estado, oxalá possa em breve ter também a República, entendendo por essa expressão aquilo que todos os outros brasileiros queremos e merecemos: império das leis, democracia, bens públicos básicos (educação, saúde, segurança). Implementá-la nas favelas requer o uso da força, para desalojar as quadrilhas criminosas que as controlam.

Louvemos o Estado de Direito Democrático: Forças Armadas e polícias são nossos instrumentos, a serviço dos cidadãos. O que vimos nestes dias é aquilo que deve ser normal em qualquer país decente - pessoas aplaudindo os agentes da lei, oferecendo-lhes água e ajuda, pedindo para tirar fotografias a seu lado. Estamos, felizmente, bem distantes do que via quando fui repórter, e testemunhava hostilidade ou indiferença da população a essas instituições. Tomara que tudo isso fique para trás, do mesmo modo como o país superou o descalabro econômico da hiperinflação e começa a avançar sobre a pobreza.

Rio 2


Via Depósito do Maia, texto de Marcelo Freixo. Negritos são meus.

Não haverá vencedores

Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública do Rio terá de passar pela garantia dos direitos dos cidadãos da favela

Dezenas de jovens pobres, negros, armados de fuzis, marcham em fuga, pelo meio do mato. Não se trata de uma marcha revolucionária, como a cena poderia sugerir em outro tempo e lugar.

Eles estão com armas nas mãos e as cabeças vazias. Não defendem ideologia. Não disputam o Estado. Não há sequer expectativa de vida.

Só conhecem a barbárie. A maioria não concluiu o ensino fundamental e sabe que vai morrer ou ser presa.

As imagens aéreas na TV, em tempo real, são terríveis: exibem pessoas que tanto podem matar como se tornar cadáveres a qualquer hora. A cena ocorre após a chegada das forças policiais do Estado à Vila Cruzeiro e ao Complexo do Alemão, zona norte do Rio de Janeiro.

O ideal seria uma rendição, mas isso é difícil de acontecer. O risco de um banho de sangue, sim, é real, porque prevalece na segurança pública a lógica da guerra. O Estado cumpre, assim, o seu papel tradicional. Mas, ao final, não costuma haver vencedores.

Esse modelo de enfrentamento não parece eficaz. Prova disso é que, não faz tanto tempo assim, nesta mesma gestão do governo estadual, em 2007, no próprio Complexo do Alemão, a polícia entrou e matou 19. E eis que, agora, a polícia vê a necessidade de entrar na mesma favela de novo.

Tem sido assim no Brasil há tempos. Essa lógica da guerra prevalece no Brasil desde Canudos. E nunca proporcionou segurança de fato. Novas crises virão. E novas mortes. Até quando? Não vai ser um Dia D como esse agora anunciado que vai garantir a paz.

Essa analogia à data histórica da 2ª Guerra Mundial não passa de fraude midiática.

Essa crise se explica, em parte, por uma concepção do papel da polícia que envolve o confronto armado com os bandos do varejo das drogas. Isso nunca vai acabar com o tráfico. Este existe em todo lugar, no mundo inteiro. E quem leva drogas e armas às favelas?

É preciso patrulhar a baía de Guanabara, portos, fronteiras, aeroportos clandestinos. O lucrativo negócio das armas e drogas é máfia internacional. Ingenuidade acreditar que confrontos armados nas favelas podem acabar com o crime organizado. Ter a polícia que mais mata e que mais morre no mundo não resolve.

Falta vontade política para valorizar e preparar os policiais para enfrentar o crime onde o crime se organiza – onde há poder e dinheiro. E, na origem da crise, há ainda a desigualdade. É a miséria que se apresenta como pano de fundo no zoom das câmeras de TV. Mas são os homens armados em fuga e o aparato bélico do Estado os protagonistas do impressionante espetáculo, em narrativa estruturada pelo viés maniqueísta da eterna “guerra” entre o bem e o mal.

Como o “inimigo” mora na favela, são seus moradores que sofrem os efeitos colaterais da “guerra”, enquanto a crise parece não afetar tanto assim a vida na zona sul, onde a ação da polícia se traduziu no aumento do policiamento preventivo. A violência é desigual.

É preciso construir mais do que só a solução tópica de uma crise episódica. Nem nas UPPs se providenciou ainda algo além da ação policial. Falta saúde, creche, escola, assistência social, lazer.

O poder público não recolhe o lixo nas áreas em que a polícia é instrumento de apartheid. Pode parecer repetitivo, mas é isso: uma solução para a segurança pública terá de passar pela garantia dos direitos básicos dos cidadãos da favela.

Da população das favelas, 99% são pessoas honestas que saem todo dia para trabalhar na fábrica, na rua, na nossa casa, para produzir trabalho, arte e vida. E essa gente — com as suas comunidades tornadas em praças de “guerra”– não consegue exercer sequer o direito de dormir em paz.

Quem dera houvesse, como nas favelas, só 1% de criminosos nos parlamentos e no Judiciário…

*Marcelo Freixo é deputado estadual (PSOL-RJ), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Rio 1

Via Vi o mundo. Negritos são meus.

A crise no Rio e o pastiche midiático


por Luiz Eduardo Soares, em seu blog

Sempre mantive com jornalistas uma relação de respeito e cooperação. Em alguns casos, o contato profissional evoluiu para amizade. Quando as divergências são muitas e profundas, procuro compreender e buscar bases de um consenso mínimo, para que o diálogo não se inviabilize. Faço-o por ética –- supondo que ninguém seja dono da verdade, muito menos eu–, na esperança de que o mesmo procedimento seja adotado pelo interlocutor. Além disso, me esforço por atender aos que me procuram, porque sei que atuam sob pressão, exaustivamente, premidos pelo tempo e por pautas urgentes. A pressa se intensifica nas crises, por motivos óbvios. Costumo dizer que só nós, da segurança pública (em meu caso, quando ocupava posições na área da gestão pública da segurança), os médicos e o pessoal da Defesa Civil, trabalhamos tanto –- ou sob tanta pressão — quanto os jornalistas.

Digo isso para explicar por que, na crise atual, tenho recusado convites para falar e colaborar com a mídia:

(1) Recebi muitos telefonemas, recados e mensagens. As chamadas são contínuas, a tal ponto que não me restou alternativa a desligar o celular. Ao todo, nesses dias, foram mais de cem pedidos de entrevistas ou declarações. Nem que eu contasse com uma equipe de secretários, teria como responder a todos e muito menos como atendê-los. Por isso, aproveito a oportunidade para desculpar-me. Creiam, não se trata de descortesia ou desapreço pelos repórteres, produtores ou entrevistadores que me procuraram.

(2) Além disso, não tenho informações de bastidor que mereçam divulgação. Por outro lado, não faria sentido jogar pelo ralo a credibilidade que construí ao longo da vida. E isso poderia acontecer se eu aceitasse aparecer na TV, no rádio ou nos jornais, glosando os discursos oficiais que estão sendo difundidos, declamando platitudes, reproduzindo o senso comum pleno de preconceitos, ou divagando em torno de especulações. A situação é muito grave e não admite leviandades. Portanto, só faria sentido falar se fosse para contribuir de modo eficaz para o entendimento mais amplo e profundo da realidade que vivemos. Como fazê-lo em alguns parcos minutos, entrecortados por intervenções de locutores e debatedores? Como fazê-lo no contexto em que todo pensamento analítico é editado, truncado, espremido –- em uma palavra, banido –, para que reinem, incontrastáveis, a exaltação passional das emergências, as imagens espetaculares, os dramas individuais e a retórica paradoxalmente triunfalista do discurso oficial?

(3) Por fim, não posso mais compactuar com o ciclo sempre repetido na mídia: atenção à segurança nas crises agudas e nenhum investimento reflexivo e informativo realmente denso e consistente, na entressafra, isto é, nos intervalos entre as crises. Na crise, as perguntas recorrentes são: (a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a explosão de violência? (b) O que a polícia deveria fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas? (c) Por que o governo não chama o Exército? (d) A imagem internacional do Rio foi maculada? (e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?

Ao longo dos últimos 25 anos, pelo menos, me tornei “as aspas” que ajudaram a legitimar inúmeras reportagens. No tópico, “especialistas”, lá estava eu, tentando, com alguns colegas, furar o bloqueio à afirmação de uma perspectiva um pouquinho menos trivial e imediatista. Muitas dessas reportagens, por sua excelente qualidade, prescindiriam de minhas aspas –- nesses casos, reduzi-me a recurso ocioso, mera formalidade das regras jornalísticas. Outras, nem com todas as aspas do mundo se sustentariam. Pois bem, acho que já fui ou proporcionei aspas o suficiente. Esse código jornalístico, com as exceções de praxe, não funciona, quando o tema tratado é complexo, pouco conhecido e, por sua natureza, rebelde ao modelo de explicação corrente. Modelo que não nasceu na mídia, mas que orienta as visões aí predominantes.

Particularmente, não gostaria de continuar a ser cúmplice involuntário de sua contínua reprodução.

Eis por que as perguntas mencionadas são expressivas do pobre modelo explicativo corrente e por que devem ser consideradas obstáculos ao conhecimento e réplicas de hábitos mentais refratários às mudanças inadiáveis. Respondo sem a elegância que a presença de um entrevistador exigiria. Serei, por assim dizer, curto e grosso, aproveitando-me do expediente discursivo aqui adotado, em que sou eu mesmo o formulador das questões a desconstruir. Eis as respostas, na sequência das perguntas, que repito para facilitar a leitura:


(a) O que fazer, já, imediatamente, para sustar a violência e resolver o desafio da insegurança?

Nada que se possa fazer já, imediatamente, resolverá a insegurança. Quando se está na crise, usam-se os instrumentos disponíveis e os procedimentos conhecidos para conter os sintomas e salvar o paciente. Se desejamos, de fato, resolver algum problema grave, não é possível continuar a tratar o paciente apenas quando ele já está na UTI, tomado por uma enfermidade letal, apresentando um quadro agudo. Nessa hora, parte-se para medidas extremas, de desespero, mobilizando-se o canivete e o açougueiro, sem anestesia e assepsia. Nessa hora, o cardiologista abre o tórax do moribundo na maca, no corredor. Não há como construir um novo hospital, decente, eficiente, nem para formar especialistas, nem para prevenir epidemias, nem para adotar procedimentos que evitem o agravamento da patologia. Por isso, o primeiro passo para evitar que a situação se repita é trocar a pergunta. O foco capaz de ajudar a mudar a realidade é aquele apontado por outra pergunta: o que fazer para aperfeiçoar a segurança pública, no Rio e no Brasil, evitando a violência de todos os dias, assim como sua intensificação, expressa nas sucessivas crises?

Se o entrevistador imaginário interpelar o respondente, afirmando que a sociedade exige uma resposta imediata, precisa de uma ação emergencial e não aceita nenhuma abordagem que não produza efeitos práticos imediatos, a melhor resposta seria: caro amigo, sua atitude representa, exatamente, a postura que tem impedido avanços consistentes na segurança pública. Se a sociedade, a mídia e os governos continuarem se recusando a pensar e abordar o problema em profundidade e extensão, como um fenômeno multidimensional a requerer enfrentamento sistêmico, ou seja, se prosseguirmos nos recusando, enquanto Nação, a tratar do problema na perspectiva do médio e do longo prazos, nos condenaremos às crises, cada vez mais dramáticas, para as quais não há soluções mágicas.

A melhor resposta à emergência é começar a se movimentar na direção da reconstrução das condições geradoras da situação emergencial. Quanto ao imediato, não há espaço para nada senão o disponível, acessível, conhecido, que se aplica com maior ou menor destreza, reduzindo-se danos e prolongando-se a vida em risco.

A pergunta é obtusa e obscurantista, cúmplice da ignorância e da apatia.

(b) O que as polícias fluminenses deveriam fazer para vencer, definitivamente, o tráfico de drogas?

Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes, nos “arregos” celebrados por suas bandas podres, à luz do dia, diante de todos. Deveriam parar de negociar armas com traficantes, o que as bandas podres fazem, sistematicamente. Deveriam também parar de reproduzir o pior do tráfico, dominando, sob a forma de máfias ou milícias, territórios e populações pela força das armas, visando rendimentos criminosos obtidos por meios cruéis.

Ou seja, a polaridade referida na pergunta (polícias versus tráfico) esconde o verdadeiro problema: não existe a polaridade. Construí-la –- isto é, separar bandido e polícia; distinguir crime e polícia — teria de ser a meta mais importante e urgente de qualquer política de segurança digna desse nome. Não há nenhuma modalidade importante de ação criminal no Rio de que segmentos policiais corruptos estejam ausentes. E só por isso que ainda existe tráfico armado, assim como as milícias.

Não digo isso para ofender os policiais ou as instituições. Não generalizo. Pelo contrário, sei que há dezenas de milhares de policiais honrados e honestos, que arriscam, estóica e heroicamente, suas vidas por salários indignos. Considero-os as primeiras vítimas da degradação institucional em curso, porque os envergonha, os humilha, os ameaça e acua o convívio inevitável com milhares de colegas corrompidos, envolvidos na criminalidade, sócios ou mesmo empreendedores do crime.

Não nos iludamos: o tráfico, no modelo que se firmou no Rio, é uma realidade em franco declínio e tende a se eclipsar, derrotado por sua irracionalidade econômica e sua incompatibilidade com as dinâmicas políticas e sociais predominantes, em nosso horizonte histórico. Incapaz, inclusive, de competir com as milícias, cuja competência está na disposição de não se prender, exclusivamente, a um único nicho de mercado, comercializando apenas drogas –- mas as incluindo em sua carteira de negócios, quando conveniente.

O modelo do tráfico armado, sustentado em domínio territorial, é atrasado, pesado, anti-econômico: custa muito caro manter um exército, recrutar neófitos, armá-los (nada disso é necessário às milícias, posto que seus membros são policiais), mantê-los unidos e disciplinados, enfrentando revezes de todo tipo e ataques por todos os lados, vendo-se forçados a dividir ganhos com a banda podre da polícia (que atua nas milícias) e, eventualmente, com os líderes e aliados da facção.

É excessivamente custoso impor-se sobre um território e uma população, sobretudo na medida que os jovens mais vulneráveis ao recrutamento comecem a vislumbrar e encontrar alternativas. Não só o velho modelo é caro, como pode ser substituído com vantagens por outro muito mais rentável e menos arriscado, adotado nos países democráticos mais avançados: a venda por delivery ou em dinâmica varejista nômade, clandestina, discreta, desarmada e pacífica. Em outras palavras, é melhor, mais fácil e lucrativo praticar o negócio das drogas ilícitas como se fosse contrabando ou pirataria do que fazer a guerra. Convenhamos, também é muito menos danoso para a sociedade, por óbvio.

(c) O Exército deveria participar?

Fazendo o trabalho policial, não, pois não existe para isso, não é treinado para isso, nem está equipado para isso. Mas deve, sim, participar. A começar cumprindo sua função de controlar os fluxos das armas no país. Isso resolveria o maior dos problemas: as armas ilegais passando, tranquilamente, de mão em mão, com as benções, a mediação e o estímulo da banda podre das polícias.

E não só o Exército. Também a Marinha, formando uma Guarda Costeira com foco no controle de armas transportadas como cargas clandestinas ou despejadas na baía e nos portos. Assim como a Aeronáutica, identificando e destruindo pistas de pouso clandestinas, controlando o espaço aéreo e apoiando a PF na fiscalização das cargas nos aeroportos.

(d) A imagem internacional do Rio foi maculada?

Claro. Mais uma vez.

(e) Conseguiremos realizar com êxito a Copa e as Olimpíadas?

Sem dúvida. Somos ótimos em eventos. Nesses momentos, aparece dinheiro, surge o “espírito cooperativo”, ações racionais e planejadas impõem-se. Nosso calcanhar de Aquiles é a rotina. Copa e Olimpíadas serão um sucesso. O problema é o dia a dia.

Palavras Finais

Traficantes se rebelam e a cidade vai à lona. Encena-se um drama sangrento, mas ultrapassado. O canto de cisne do tráfico era esperado. Haverá outros momentos análogos, no futuro, mas a tendência declinante é inarredável. E não porque existem as UPPs, mas porque correspondem a um modelo insustentável, economicamente, assim como social e politicamente.

As UPPs, vale dizer mais uma vez, são um ótimo programa, que reedita com mais apoio político e fôlego administrativo o programa “Mutirões pela Paz”, que implantei com uma equipe em 1999, e que acabou soterrado pela política com “p” minúsculo, quando fui exonerado, em 2000, ainda que tenha sido ressuscitado, graças à liderança e à competência raras do ten.cel. Carballo Blanco, com o título GPAE, como reação à derrocada que se seguiu à minha saída do governo.

A despeito de suas virtudes, valorizadas pela presença de Ricardo Henriques na secretaria estadual de assistência social –um dos melhores gestores do país–, elas não terão futuro se as polícias não forem profundamente transformadas. Afinal, para tornarem-se política pública terão de incluir duas qualidades indispensáveis: escala e sustentatibilidade, ou seja, terão de ser assumidas, na esfera da segurança, pela PM. Contudo, entregar as UPPs à condução da PM seria condená-las à liquidação, dada a degradação institucional já referida.

O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia, vale reiterar.

Quando o tráfico de drogas no modelo territorializado atinge seu ponto histórico de inflexão e começa, gradualmente, a bater em retirada, seus sócios –- as bandas podres das polícias — prosseguem fortes, firmes, empreendedores, politicamente ambiciosos, economicamente vorazes, prontos a fixar as bandeiras milicianas de sua hegemonia.

Discutindo a crise, a mídia reproduz o mito da polaridade polícia versus tráfico, perdendo o foco, ignorando o decisivo: como, quem, em que termos e por que meios se fará a reforma radical das polícias, no Rio, para que estas deixem de ser incubadoras de milícias, máfias, tráfico de armas e drogas, crime violento, brutalidade, corrupção? Como se refundarão as instituições policiais para que os bons profissionais sejam, afinal, valorizados e qualificados? Como serão transformadas as polícias, para que deixem de ser reativas, ingovernáveis, ineficientes na prevenção e na investigação?

As polícias são instituições absolutamente fundamentais para o Estado democrático de direito. Cumpre-lhes garantir, na prática, os direitos e as liberdades estipulados na Constituição. Sobretudo, cumpre-lhes proteger a vida e a estabilidade das expectativas positivas relativamente à sociabilidade cooperativa e à vigência da legalidade e da justiça.

A despeito de sua importância, essas instituições não foram alcançadas em profundidade pelo processo de transição democrática, nem se modernizaram, adaptando-se às exigências da complexa sociedade brasileira contemporânea. O modelo policial foi herdado da ditadura. Ele servia à defesa do Estado autoritário e era funcional ao contexto marcado pelo arbítrio. Não serve à defesa da cidadania.

A estrutura organizacional de ambas as polícias impede a gestão racional e a integração, tornando o controle impraticável e a avaliação, seguida por um monitoramento corretivo, inviável. Ineptas para identificar erros, as polícias condenam-se a repeti-los. Elas são rígidas onde teriam de ser plásticas, flexíveis e descentralizadas; e são frouxas e anárquicas, onde deveriam ser rigorosas. Cada uma delas, a PM e a Polícia Civil, são duas instituições: oficiais e não-oficiais; delegados e não-delegados.

E nesse quadro, a PEC-300 é varrida do mapa no Congresso pelos governadores, que pagam aos policiais salários insuficientes, empurrando-os ao segundo emprego na segurança privada informal e ilegal.

Uma das fontes da degradação institucional das polícias é o que denomino “gato orçamentário”, esse casamento perverso entre o Estado e a ilegalidade: para evitar o colapso do orçamento público na área de segurança, as autoridades toleram o bico dos policiais em segurança privada.

Ao fazê-lo, deixam de fiscalizar dinâmicas benignas (em termos, pois sempre há graves problemas daí decorrentes), nas quais policiais honestos apenas buscam sobreviver dignamente, apesar da ilegalidade de seu segundo emprego, mas também dinâmicas malignas: aquelas em que policiais corruptos provocam a insegurança para vender segurança; unem-se como pistoleiros a soldo em grupos de extermínio; e, no limite, organizam-se como máfias ou milícias, dominando pelo terror populações e territórios. Ou se resolve esse gargalo (pagando o suficiente e fiscalizando a segurança privada /banindo a informal e ilegal; ou legalizando e disciplinando, e fiscalizando o bico), ou não faz sentido buscar aprimorar as polícias.

O Jornal Nacional, nesta quinta, 25 de novembro, definiu o caos no Rio de Janeiro, salpicado de cenas de guerra e morte, pânico e desespero, como um dia histórico de vitória: o dia em que as polícias ocuparam a Vila Cruzeiro. Ou eu sofri um súbito apagão mental e me tornei um idiota contumaz e incorrigível ou os editores do JN sentiram-se autorizados a tratar milhões de telespectadores como contumazes e incorrigíveis idiotas.

Ou se começa a falar sério e levar a sério a tragédia da insegurança pública no Brasil, ou será pelo menos mais digno furtar-se a fazer coro à farsa.