Também no II Congresso de Direito de Família do Mercosul, foi proferida palestra pelo Dr. José J. Camargo, Diretor- médico do Hospital Dom Vicente Scherer, Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica e professor da UFRGS.Pioneiro em transplante de pulmão na América Latina, em 1989, tendo realizado cerca de 300 transplantes de pulmão e sendo o único a realizar transplante de pulmão com doadores vivos fora dos Estados Unidos. Foi o idealizador e hoje dirige o Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre, e é Diretor de Cirurgia Torácica no Pavilhão Pereira Filho, também da Santa Casa, tendo realizado mais de 30.000 cirurgias de tórax. Tem centenas de publicações científicas e já proferiu cerca de 900 conferências, em 22 países.
Durante a palestra, ele leu uma crônica sua postada Zero Hora nº. 15880, 15/2/2009, a qual reproduzo aqui:
"O sagrado direito de morrer
Em estado vegetativo, era um ser inerte, disforme e alienado. As contraturas e a atrofia muscular determinaram que todas as articulações ficassem deformadas e rígidas. O lindo cabelo preto já não brilhava e fora cortado bem curto, porque assim era mais fácil mantê-lo razoavelmente limpo apesar dos vômitos e das regurgitações e da saliva que, não sendo mais engolida, teimava em escorrer pelos lados da boca e a formar poças atrás da nuca, na junção com o travesseiro de plástico.
Os olhos amendoados na foto sorridente não tinham mais nenhuma expressão, vagavam perdidos na falta de horizontes e exigiam um cuidado constante porque a tendência de se manterem semiabertos e sem as piscadelas protetoras determinava uma conjuntivite crônica com a presença permanente de crostas.
Sem controle sobre os esfíncteres, não havia como evitar o uso de fraldas que nos últimos anos foram ficando progressivamente maiores para que não extravasassem as fezes, que diluídas pela urina tendiam a escorrer para os lençóis. Na verdade, quanto mais perfeita a vedação das fraldas, mais o paciente é obrigado a conviver com seus dejetos.
Por mais que a equipe de enfermagem se esforce, é quase impossível evitar as assaduras e as escaras, que são áreas de necrose da pele nos pontos de compressão dos ossos contra o colchão. A higiene pessoal de quem não abre as mãos, não estende as articulações e mantém uma contratura espástica das mandíbulas, é sempre incompleta e precária.
Semanas depois do acidente, a intubação pela boca fora substituída por um orifício no pescoço, através do qual uma cânula traqueal era mantida conectada a um aparelho de respiração artificial, 24 horas por dia. Outra sonda fora introduzida no abdômen diretamente no estômago, para alimentação, depois que se verificou que não tinha mais perspectivas de voltar a mastigar e engolir.
Com esta lesão cerebral grave, que por pouco não lhe provocou morte encefálica, Eluana Englaro fora acompanhada, com alguma expectativa, durante seis meses, período durante o qual as lesões neurológicas reversíveis se recuperam.
Não um, mas 14 semestres depois, Giuseppe, seu amado pai, sofrido e desesperançado, consciente de que esse martírio se arrastaria tão mais quanto mais perfeitos fossem os cuidados de sustentação médica disso que parecia tudo, menos vida, entrou na Justiça italiana com o pedido de cessação do atendimento, para cumprir a vontade da filha, que um dia, saudável e feliz, lhe manifestara o repúdio aos métodos irracionais de protelação da morte.
Dez anos depois, numa decisão que só o ministro Berlusconi seria capaz de considerar precipitada, a Suprema Corte italiana autorizou a ortotanásia, ou seja, a interrupção do suporte artificial da vida.
Essas discussões que comoveram a Itália e o mundo têm a idade da moderna terapia intensiva, uma das grandes conquistas da medicina moderna, capaz de salvar pessoas condenadas à morte poucas décadas atrás, mas também, em alguns traumatismos cranianos graves, de criar arremedos humanos suficientemente grotescos para gerar em pais extremados o antes impensável sentimento da morte desejada.
Todo o esforço da terapia intensiva na luta contra a morte só tem sentido se houver a chance de uma vida digna depois desse enfrentamento.
As teses que apoiam a defesa incondicional da vida, baseadas em sectários conceitos religiosos, precisam ser urgentemente recicladas de racionalidade e de compaixão.
Considero que neste caso todas as opiniões contrárias são desrespeitosas com o doloroso martírio do Giuseppe.
Ou haverá um juiz mais imparcial do que um pai que conviveu com o conflito desses sentimentos durante 17 anos e que, exaurido pelo sofrimento, decidiu que a morte em vida é a mais indigna de todas as mortes?"
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