Esgotamentos políticos não ocorrem por decreto, é certo. Mas é certo também que o Rio Grande do Sul vem sendo comandado nos últimos anos por representantes de um campo político conservador que revela sinais eloqüentes de decadência. Decadência esta que vem sendo embalada por um discurso puramente gerencial e por uma retórica vazia de um diálogo que nunca acontece. Nesta terça-feira, começa a propaganda eleitoral no rádio e na televisão. É quando o debate político-eleitoral começa a ir para às ruas de modo mais significativo. É quando, também, os discursos que embalam os diferentes projetos políticos começam a tomar forma e a apontar o que cada candidatura representa. E, cabe lembrar, elas sempre representam um setor da sociedade. Não caem do céu e tampouco representam os anjos.
Há quatro anos, a maioria do eleitorado gaúcho optou pela proposta de um “novo jeito de governar”, apresentado pela candidatura da tucana Yeda Crusius. Representante do campo político que, no Brasil, abraçou as teses do Estado mínimo e das privatizações como fator de desenvolvimento da economia, Yeda Crusius chegou ao Palácio Piratini com a bandeira contábil do déficit zero. Determinou um corte linear de 30% no orçamento de custeio de cada secretaria e limitou brutalmente as funções do Estado, especialmente na área social. Foi um governo marcado pelo autoritarismo, pela repressão aos sindicatos e movimentos sociais, pelas denúncias de corrupção e pela extraordinária capacidade de criar conflitos dentro de sua própria base de apoio. A relação caótica da governadora com seu vice, Paulo Feijó, e a gravação que este fez de uma conversa escabrosa com o então chefe da Casa Civil, César Busatto são dois símbolos marcantes desse “novo jeito de governar”.
Mas Yeda Crusius não realizou todas essas proezas sozinha e é fundamental registrar isso como indício do esgotamento político citado acima. Sua vitória só foi possível graças a uma coalizão de forças centralizada pelo PMDB, partido que, nos quatro últimos governos, esteve no Palácio Piratini em três deles – dois diretamente, com Antonio Britto e Germano Rigotto, e um, como principal força política de apoio, o governo de Yeda Crusius. Essa coalizão de partidos que oscilam do centro à direita governou o Rio Grande do Sul, portanto, em 12 dos últimos 16 anos. Um fator importante que explica essa hegemonia é a repetição de um truque que, com algumas variações, consiste em apresentar um candidato supostamente dissidente que representaria algo de novo em relação a este próprio campo político. Foi assim com Rigotto, que se apresentou como algo diferenciado em relação a Antonio Britto, aliando a isso a promessa de uma pacificação para uma suposta guerra que estaria acontecendo no Estado. Uma “guerra”, lembre-se, entre dois projetos políticos, com símbolos e propostas bem definidos na história recente do Estado.
De um lado, temos governos que apostaram na privatização da CRT, de parte da CEEE, do Banrisul (que acabou interrompida) na extinção da Caixa Econômica Estadual, na guerra fiscal para atrair empresas como a GM e a Ford, na “pacificação” e, agora, no déficit zero. Temos aí 12 anos de governo e um balanço que nunca foi feito por essas forças políticas e pelos grandes meios de comunicação do Estado que, na maioria das vezes, trabalharam como parceiros desses projetos, desempenhando inclusive protagonismos diretos como foi o caso da RBS no processo de privatização da CRT.
De outro lado, há um intervalo de quatro anos neste período, representado pelo governo Olívio Dutra. Alguns dos símbolos das apostas deste governo: Fórum Social Mundial, criação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), implementação do Orçamento Participativo Estadual, incentivo aos sistemas locais de produção, em vez de priorizar a concessão de grandes benefícios fiscais a algumas grandes empresas multinacionais.
Trata-se de um resumo esquemático, sem dúvida, e repleto de lacunas, portanto. Mas é importante mencionar esses símbolos e realizações para lembrar que se trata de projetos políticos em disputa, liderados por diferentes setores da sociedade que tem história e, supostamente, responsabilidade por seus atos e escolhas. Ocorre que, no Rio Grande do Sul, o governo Olívio Dutra continua sendo lembrado, por seus adversários político-midiáticos, pela “expulsão” da Ford, pelo “caos” na segurança pública, pela “partidarização” do Estado. E os governos Britto, Rigotto e Yeda são acompanhados por um curioso fenômeno: ao final de cada um deles, um braço político destaca-se do Executivo e se apresenta como sendo oposição ao governo do qual participou ativamente até então.
O mesmo ocorre agora com as candidaturas de Yeda Crusius (PSDB) e José Fogaça (PMDB). O PMDB teve um papel central no governo tucano: ele foi, entre outras coisas, o avalista político da governadora Yeda, quando ela enfrentou o processo de impeachment na Assembléia Legislativa. Foi o PMDB também, com a participação direta de lideranças como o senador Pedro Simon e o deputado federal Eliseu Padilha, que evitou a desintegração do governo por ocasião do episódio da gravação da conversa entre o vice Paulo Feijó e o ex-chefe da Casa Civil, César Busato (quando este, lembre-se, afirmou que partidos da base do governo utilizavam estatais para fazer caixa para campanhas políticas).
E o truque é repetido: Fogaça abandona a prefeitura de Porto Alegre e apresenta-se como o “candidato do diálogo”, uma alternativa à truculenta Yeda Crusius. Alternativa para quem? Para os mesmos setores que sustentaram o governo Antonio Britto, o governo Fernando Henrique Cardoso, o governo Rigotto e, agora, o governo Yeda. Fogaça é a aposta do PMDB que, em nível nacional, apóia Dilma Rousseff. Uma escolha que, se dependesse exclusivamente do PMDB gaúcho, talvez não acontecesse. Crítico dos “outros PMDBs” nacionais, o “velho MDB” do senador Simon não esconde suas simpatias pela candidatura do tucano José Serra. Trata-se, sem dúvida, de uma afinidade ideológica que ajuda a identificar a evolução das posições e dos governos na história recente do Rio Grande do Sul. A contradição central aí não é da candidatura de Dilma Rousseff e tampouco da candidatura de Tarso Genro ao governo do Estado.
Mas com a repetição os truques começam a perder força. A imagem apática de José Fogaça no debate realizado na TV Bandeirantes, e a eletricidade meio que enlouquecida de Yeda Crusius são um símbolo eloqüente de um esgotamento. Não há nada que garanta, é claro, que esse truque não vai funcionar mais uma vez. Talvez a mudança política qualitativa no cenário nacional, com o êxito do governo Lula acabe convencendo a maioria do eleitorado gaúcho que está na hora de virar a página e abrir um novo ciclo político na história do Estado. Há algumas regiões e empresas do Estado que já experimentam resultados positivos resultantes dessa escolha: a cidade de Rio Grande é uma delas, com o desenvolvimento de um pólo naval; a Semeato, fábrica de tratores de Passo Fundo, que saiu do buraco graças ao programa Mais Alimentos do governo federal. Há muitos outros exemplos. A própria governadora Yeda, ironicamente, falou de um deles no debate da Band, que é o fortalecimento da agricultura familiar no Estado. Não é casual que Yeda precise se referir regularmente a obras e projetos do governo Lula como sendo realizações de seu governo. É o que tem para dizer, além do discurso do déficit zero.
Os projetos, seus símbolos e realizações podem ser bem identificados. É preciso apenas levantar o véu de mistificação que cobre o Estado há alguns anos, tecido pela retórica conservadora que promete paz onde não há guerra, que olha para o Estado como um apêndice de seus negócios privados e que acena eternamente com o novo que sempre se repete como velho. A repetição do truque indica, de fato, que essas forças não tem nada de verdadeiramente novo para oferecer ao povo do Rio Grande do Sul.
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